segunda-feira, 29 de maio de 2017

O AMOR BATER NA PORTA

Cantiga do amor sem eira nem beira, 
vira o mundo de cabeça  para baixo, 
suspende a saia das mulheres, 
tira os óculos dos homens, 
o amor, seja como for, 
é o amor. 

Meu bem, não chores, 
hoje tem filme de Carlito! 

O amor bate na porta 
o amor bate na aorta, 
fui abrir e me constipei. 
Cardíaco e melancólica, 
o amor ronca na horta 
entre pés de laranjeira 
entre uvas meio verdes 
e desejos já maduros. 

Entre uvas meio verdes, 
meu amor, não te atormentes. 
Certos ácidos adoçam  a boca murcha dos velhos 
e quando os dentes não mordem 
e quando os braços não prendem 
o amor faz uma cócega 
o amor desenha uma curva propõe uma geometria. 

Amor é bicho instruído. 
Olha: o amor pulou o muro 
o amor subiu na árvore  em tempo de se estrepar. 
Pronto, o amor se estrepou. 
Daqui estou vendo o sangue que escorre do corpo andrógino. 
Essa ferida, meu bem, às vezes não sara nunca 
às vezes sara amanhã. 

Daqui estou vendo o amor irritado, desapontado, 
mas também vejo outras coisas: 
vejo corpos, vejo almas 
vejo beijos que se beijam
ouço mãos que se conversam  e que viajam sem mapa. 
Vejo muitas outras coisas que não ouso compreender... 

Carlos Drummond de Andrade, in 'Brejo das Almas'
Foto (internet) 

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